quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Heavy ‘Female’ Metal


Por Mara Vanessa
Matéria de arquivo: Ano 2008
Foto: Banda Vanilla Ninja

Depois da afirmação da mulher no mercado de trabalho, acompanhada do rompimento com as leis draconianas impostas por uma tradição conservadora, a figura feminina começou a ocupar uma projeção social nunca antes imaginada. Sexo, pílula, altos postos nos mais diversos cargos profissionais, independência e liberdade de expressão são alguns dos efeitos gerados por esse turbilhão de mudanças. Fazendo parte desse esquema, situa-se a relação da mulher com a música pesada.
Inicialmente, a atuação feminina dentro do meio Rock n’ Roll estava limitada às groupies, objetos sexuais e inspirações etéreas. Com a chegada da Revolução anos 70 e percorrendo a década de 80, muitas mulheres começaram a pegar na foice para ocupar seu espaço na música mundial. Entre elas, estão Janis Joplin, Suzi Quatro, Girlschool, Volkanas, Go Go’s, The Runaways e Doro Pesch , por exemplo.
Com o reconhecimento e a alta qualidade dos trabalhos realizados por estes e outros nomes, mais e mais mulheres identificaram-se e decidiram que já estava na hora de fazer sua própria história. Unindo criatividade, competência, beleza e todos os demais atributos inerentes ao estrogênio (hormônio básico da mulher), vários projetos foram capitaneados e tocados pra frente. Um deles é o da baixista Thaís Dias.
Formada em música pela Escola de Música Villa-Lobos, a carioca integrou a banda Trinnity (Atmospheric/Gothic Metal) - que alcançou grande repercussão nacional até a data do encerramento de suas atividades, no início de Janeiro de 2007. Ocupou também os vocais da banda Alonity (Prog/ Gothic Metal) e os teclados do Quintessence (Death / Progressive Metal).
Thaís acredita que a principal mudança na atuação feminina dentro do Heavy Metal é o fato de que, hoje, a mulher está “totalmente atuante em bandas, como instrumentistas, roadies, produtoras musicais e engenheiras de som. Algo muito diferente do passado, onde as mulheres no Metal eram apenas as groupies, platéia, e, quando eram parte da banda, estavam geralmente no vocal. Hoje em dia, temos ótimas guitarristas, baixistas, bateristas e por aí vai.” Segundo ela, “no passado, as poucas bandas de mulher eram de punk, com melodias mais simples e músicas de poucos acordes. Hoje, vemos no cenário mulheres extremamente talentosas e virtuosas. A mulher é muito criativa e dedicada, e assim está conquistando seu espaço no Heavy Metal, tanto sendo parte das bandas, quanto por trás dos bastidores.”
Quando questionada sobre o desaparecimento da feminilidade, em que muitas mulheres, ao subir nos palcos, procuram assumir uma postura máscula em prol de uma possível maior aceitação, Thaís afirma que esse “processo da mulher se masculinizar para “competir” com o homem ocorreu em vários setores da sociedade, a partir do momento em que a mulher teve de sair de casa para trabalhar, dividir as despesas e ser independente. No final dos anos 70 e início dos anos 80, a mulher teve que ir para o mercado de trabalho, teve de bater de frente com muitas barreiras e assim, muitas delas assumiram uma postura um pouco masculina, como usar terninhos, roupas sóbrias, maquiagem muito discreta, pastas e sapatos baixos. Mas aos poucos, a mulher foi sendo reconhecida e pode ser ela mesma, ou seja, pode ser feminina mesmo sendo uma executiva.” A musicista revela também que “no caso da música, não aconteceu muito assim, pois arte é algo muito ligado à emoção, e acho difícil uma mulher assumir uma postura máscula e encenar um personagem em cima de um palco musical, pois as emoções afloram muito e não teria como esconder sua verdadeira essência. A mulher que assume uma postura masculina no palco, na minha opinião, também tem uma postura masculina na sua vida pessoal.”
Um dos fatores que apontam para um maior interesse por parte da esfera feminina é a identificação que ocorre entre banda e público. “A identificação é muito positiva, pois muitas pessoas acham o máximo ver a mulher no palco, e conseguem ver seu talento. Muitas meninas também gostam demais de bandas compostas por mulheres, é uma visualização delas mesmas naquelas que estão no palco”, diz Thaís Dias.
Apesar de toda essa evolução, é constante a auto-afirmação das bandas que, possuindo em seu núcleo componentes femininos, tendem a utilizar esse fato como adjetivo, como por exemplo: banda feminina de Doom/Gothic Metal, Female Band, Female Vocals, entre outros. Tal atitude vem a limitar ainda mais o universo feminino dentro do Heavy Metal, criando subgêneros e retirando a naturalidade que deveria existir. “Esses títulos sempre me incomodaram um pouco, pois nos flyers (para chamar atenção do público) algumas vezes eram colocados estes adjetivos e eu me sentia desmerecida, pois parece que as pessoas vão te ver como uma atração de circo, do tipo ‘olhem, mulheres tocando numa banda’. Eu me sentia um macaquinho adestrado e não uma musicista, mas o que me deixava tranquila é que ao começar a tocar, aqueles preconceituosos sempre ficavam de boca calada, pois viam que realmente a banda era tão boa quanto uma banda formada por homens e que na verdade não existe diferença. Somos todos iguais, todos temos o mesmo número de genes e as mesmas capacidades”, reforça Thaís.
Dentro de uma crença semelhante, encontra-se a multi-instrumentista Florisa Gessle. Sendo uma das maiores representantes da atuação feminina no Piauí, Florisa já tocou em bandas como a aclamada Into Morphin (Death/Black Metal), Evil Woman (Black Sabbath cover) e Ever Down( Dark Metal). Para ela, os motivos que levam uma banda composta exclusivamente por mulheres ter vida relativamente breve, se comparada com outras, dependem essencialmente do contexto. “Creio que existam vários fatores e cada caso deve ser analisado em seu próprio contexto. Mas no geral, viver de música no Brasil é uma utopia, porque esse país não valoriza a cultura de um modo geral. A imagem da mulher é altamente vulgarizada e banalizada. E esse padrão é reforçado pelas próprias mulheres. Uma brasileira, em geral, quer ser quer ser valorizada pelo apelo sexual do seu corpo. Isso é deprimente! A garota brasileira quer ser modelo-atriz cantora e posar pra alguma revista masculina ou quer ser uma musicista de sucesso? O que vemos no geral é a primeira opção. Com esse contexto, é difícil apostar numa carreira musical. As poucas pessoas que se aventuram (isso homens ou mulheres) ou saem do país ou desistem. No contexto mundial, vemos muitos casos de boas musicistas que conseguem firmar suas carreiras com sucesso, entretanto, nem sempre bandas formadas exclusivamente por mulheres duram.Creio que em parte porque mulheres precisam dedicar mais tempo à família. Isso, às vezes, inviabiliza longas viagens como é comum em bandas grandes”, argumenta Florisa.
Mas, não é apenas em cima dos palcos em que há a parceria ‘mulheres e música pesada’. Na indústria musical, na imprensa, na organização de eventos, em todos os lugares, o ‘poder das saias’ aparece. Um claro exemplo disso é o trabalho de Gisele Santos frente ao site Mundo Rock de Calcinha, especializado em abordar o universo das fêmeas dentro do Rock. A idéia de montar um site com essa especialidade surgiu quando Gisele apresentou, durante dois anos, um programa de rock que começou a ser transmitido em uma web rádio para brasileiros residentes no Japão. “Depois desse tempo, eu sentia que já tinha fechado este ciclo e muita gente sempre me falava ‘você é mulher, criou o portal MundoRock.net (há 08 anos no ar) - sendo que a maioria que existem foram criados por homens - seria bacana você fazer um trabalho dedicado as mulheres do rock’. E assim nasceu em maio de 2007 o Mundo Rock de Calcinha, jornalismo especializado em rock feminino, que hoje já é um portal, além do programa de rádio (podcast)”.
Gisele revela que ainda há uma escassez entre e a esfera feminina e o Rock. Ela afirma “que as bandas de meninas são mais no estilo pop rock e hardcore e ainda existem poucas de metal ou som mais pesado.” Entretanto, aponta um progresso considerável, pois “antes também existiam mais vocalistas, mas agora já tem mais instrumentistas, inclusive bateristas, que sempre foi raro.”
O programa é anunciado como “o único programa de rock da atualidade dedicado ao rock feminino”, o que já leva a uma classificação, rótulo, limitação. A apresentadora contra-argumenta. “É uma maneira de poder explicar do que se trata e mesmo assim, talvez por preguiça de ler, muitas bandas e homens mandam material pra rolar na rádio. Na internet ele é o único, já existiram outros, que na verdade não era somente de rock, mas não foram em frente com os projetos. E além do programa de rádio/podcast, o nosso portal é o primeiro e único totalmente musical, dedicado ao rock feminino. Tem gente que confunde com zines ou sites feministas que, às vezes, citam bandas de mulheres do rock. E como já falei, é jornalismo especializado em rock feminino.”
Em suma, a mulher vem transformando e sendo transformada em cada novo meio que ocupa. E não seria diferente com o Heavy Metal. Essa matéria não poderia ser finalizada sem a menção de figuras que estão deixando marcas na história da música, como Angela Gossow (Arch Enemy), Cristina Scabbia (Lacuna Coil), Valhalla, Anneke van Giersbergen (ex- The Gathering e atual Agua de Annique), Kittie, Ruyter Suys e Karen Cuda (Nashville Pussy) e Scatha. Essas e muitas outras bandas estão construindo o importante arcabouço da mulher e o mercado fonográfico.

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